Back to blog

Olhando para o futuro da democracia brasileira

Mille Bojer
Fevereiro, 2014

Vivemos um momento fascinante para a democracia do Brasil e da América Latina. Em todo o continente as democracias, embora ainda relativamente jovens, cada vez mais criam raízes e são vistas como o normal. No entanto, a natureza, a qualidade e a cultura dessas democracias ainda estão em formação. É possível que, nas próximas décadas, muitos países da América Latina experimentem novas formas de democracia que irão inspirar outros países da região e do mundo. Esse é um fenômeno no qual devemos prestar atenção.

No Brasil, mais de um quarto de século após a adoção da ‘Constituição Cidadã’ ao fim da ditadura militar em 1988, a geração que está se formando agora nas universidades já nasceu em uma democracia. Esses indivíduos e a maior parte da população atual têm amplo acesso a novos meios de comunicação, novos canais para a participação social e novos modelos de organização. Em 2013, a ex-senadora Marina Silva buscou se candidatar às eleições presidenciais de 2014 por um novo partido político chamado “Rede” (sua petição foi negada). No mesmo ano, uma avassaladora série de protestos ocorreram em todo o país. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas expressar sua insatisfação com a atuação do governo em questões como transporte público, educação e saúde, além das prioridades do governo e a corrupção relacionada à Copa do Mundo de 2014. Em um país que apresentou, ao menos nas últimas três décadas, uma cultura cívica passiva, esses protestos levaram alguns a dizer que “o gigante acordou”. Os brasileiros querem cada vez mais conhecer e exigir seus direitos.

As manifestações não pegaram apenas o governo desprevenido. Muitos líderes de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) se surpreenderam com a velocidade com a qual um movimento descentralizado de pessoas passou do campo virtual ao físico, no espaço de alguns dias, com a ajuda de novas e velhas mídias. Em conversa com um importante líder da sociedade civil durante os protestos, ele me disse que “se qualquer pessoa afirmar que sabe o que está acontecendo aqui, quem eles pensam que são?”.

Há muitas outras dimensões nas recentes mudanças nas relações entre cidadãos e Estado no Brasil. Nos últimos 5-10 anos, as OSCs brasileiras viram uma mudança em suas relações com financiadores e com o governo. Motivado pela pressão da sociedade civil, o governo federal brasileiro está no processo de redefinir as estruturas legais que regulam como o Estado se relaciona, investe e contrata OSCs, de modo a tornar essas relações mais claras e seguras. Ao mesmo tempo, com o reconhecimento do Brasil como uma “economia emergente”, a ajuda internacional foi reduzida ou ganhou novas prioridades, apesar da persistência de muitos problemas sociais no país. Com essa nova classificação, espera-se que o Brasil assuma o papel de doador internacional em vez de um recebedor de ajuda. Essa mudança teve um grande impacto em organizações de defesa de direitos, que eram bastante dependentes de doações internacionais. Ao mesmo tempo, financiadores brasileiros, principalmente as empresas, não estão prontos para investir o suficiente em causas consideradas controversas, como as que lidam com raça, questões de gênero, direitos LGBT, violência, drogas e pessoas com deficiência. Como resultado, muitas organizações de defesa de direitos estão fechando suas portas.

Frente a essa realidade, a Reos no Brasil está se envolvendo cada vez mais em cenários e laboratórios sociais relacionados ao tema da democracia. Em 2013, estabelecemos uma parceria com a Articulação D3 – Diálogo, Direitos e Democracia para co-convocar um processo de Cenários Transformadores sobre o futuro da sociedade civil no Brasil. O processo, chamado “Sociedade Civil 2023”, envolveu uma grande diversidade de representantes de OSCs, movimentos sociais, agências governamentais, do setor privado e de universidades. O grupo desenvolveu quatro cenários que receberam nomes de famosas brincadeiras infantis, de modo a refletir a dinâmica arquetípica que eles contêm. Os quatro cenários ilustram os riscos e as oportunidades presentes na atual realidade da sociedade civil e as relações entre cidadãos e Estado.

No cenário “O Mestre Mandou”, a sociedade civil e o governo estão fortemente dominados por forças de mercado e o governo é altamente tecnocrático. Organizações que se opõem à dominação do mercado são vistas como antipatrióticas e somente aquelas que conseguem se estabelecer como provedoras de serviços ao governo e às empresas sobrevivem. No cenário “Passa Anel” o governo e a imprensa adotam um discurso de inclusão e direitos humanos, mas suas ações não refletem suas palavras. Organizações da sociedade civil têm dificuldade em saber quem é o “inimigo”. Todos falam a língua delas, e os mecanismos para a participação social parecem estar funcionando, mas os problemas não estão sendo aliviados e a real influência da população em políticas públicas é baixa. No cenário “Amarelinha”, a sociedade brasileira deu uma guinada rumo ao neoconservadorismo. Líderes políticos são escolhidos por meio de um processo democrático e, em nome da proteção à família e à propriedade, causam retrocessos de direitos humanos. Organizações que defendem os direitos de minorias são cada vez mais excluídas de parcerias com o governo. Ao mesmo tempo, organizações de direitos humanos criam ações estratégicas inovadoras baseadas em novas tecnologias de informação, modelos em rede e tecnologias sociais – uma abordagem que reanima suas lutas. No cenário “Ciranda” a sociedade civil, o setor privado, o governo e os cidadãos cooperam de modo interdependente. Os cidadãos conseguem participar na definição, monitoramento e avaliação de políticas públicas. OSCs investem significativamente em comunicação; novas tecnologias promovem efetivamente a participação social; e a nova geração consegue criar uma sinergia entre gerações, conectando-se aos membros da “velha guarda” e unindo inovação e a comunicação instantânea com base histórica e inteligência política.

Todos os quatro cenários da Sociedade Civil 2023 são democráticos por natureza. No entanto, eles demonstram uma variedade de possíveis faces da democracia brasileira no futuro. Eles também oferecem um repertório para reconhecer o que está acontecendo e um lembrete de que outros futuros são possíveis, e de que criamos nosso futuro por meio de como respondemos ao que está acontecendo. Em razão da diversidade de realidades que estão presentes no Brasil hoje, é provável que os quatro cenários coexistam de alguma forma no futuro.

Os cenários descritos estão atualmente na fase de disseminação. O grupo organizou uma série de sessões de reflexão com públicos diversos e irá se reunir novamente em março para discutir o que foi sobre o que veio dessas sessões. Depois iremos identificar as implicações estratégicas dos cenários. Uma observação preliminar que surgiu dessas conversas é a de que, embora as tecnologias e plataformas para o engajamento de cidadãos sejam importantes no cenário “Ciranda”, elas não são suficientes sozinhas. Frente a esse aprendizado, a Reos está iniciando uma parceria com o Instituto Cidade Democrática (www.cidadedemocratica.org.br) e outras organizações para desenvolver um laboratório social sobre a participação dos cidadãos. O objetivo do laboratório é contribuir na construção efetiva de infraestruturas e ecossistemas para a participação social que sejam entendidos, reconhecidos e aplicados dentro de uma sociedade conectada e uma cultura democrática.

Share
Sign up to our newsletter