Por Mille Bojer e Lisa Rudnick
Por mais de 40 anos após a “guerra às drogas” ser declarada por Richard Nixon, em 1971, a narrativa dominante no regime internacional de drogas era que a produção e o uso de drogas deveriam ser combatidos, proibidos, criminalizados e erradicados. Narrativas alternativas eram essencialmente tabus. No início dos anos 2010, essa narrativa foi cada vez mais desafiada: a Comissão Global de Políticas de Drogas, que incluía ex-presidentes do Brasil, Chile, México e Colômbia, fez um chamado para “quebrar o tabu” sobre a discussão de alternativas políticas. Em 2012, a Cúpula das Américas mandatou à Organização dos Estados Americanos (OEA) que explorasse novas abordagens. A OEA convidou a Reos Partners a apoiar este trabalho, facilitando um Processo de Cenários Transformadores sobre o futuro do problema das drogas nas Américas.
Esses cenários, publicados junto a um relatório analítico sobre o problema das drogas, foram creditados por quebrar o tabu. Eles exploraram maneiras de lidar com disfunções sociais e econômicas implícitas, nomearam o valor de aprender com regimes regulatórios alternativos e lançaram luz sobre os custos injustos da estratégia dominante.
Em 2021, as forças armadas dos EUA se retiraram do Afeganistão, 20 anos depois que George W. Bush cunhou o termo “guerra ao terror” em um discurso ao Congresso após o 11 de setembro. A guerra ao terror rapidamente se tornou controversa, principalmente por causa de como foi imediatamente usada para suprimir as liberdades civis, e o governo Obama, que assumiu alguns anos depois, evitou o uso do termo. No entanto, o termo persistiu na retórica política, na mídia e no discurso geral, e uma abordagem repressiva foi aplicada de forma consistente.
A Reos Partners facilitou um processo de cenários transformadores com 25 líderes da sociedade civil afegã – eles veem alternativas para a guerra ao terror.
Esse enquadramento de “guerra contra…” tem estado em nossas mentes ultimamente. Ao longo de 2022, estivemos imersos em um ecossistema de atores que atualmente trabalham para lidar com o aumento da informação falaciosa¹ e táticas para usar informações para causar danos. Ficamos impressionadas com a linguagem combativa da mídia e com nossos próprios pares ao discutir o problema da desinformação e o que deve ser feito a respeito. Essa linguagem nos diz que se trata de “combatê-la”, “lutar contra”, “enfrentá-la”, “detectar maus atores” e, sim, “guerra à desinformação”.
Embora reconheçamos que a “armamentação² da informação” é empregada por muitos atores do conflito como tática de guerra, e que a desinformação³ desempenha um papel central na guerra na Ucrânia, não podemos deixar de nos perguntar se estamos tirando as lições que deveríamos de “guerras” anteriores sobre fenômenos complexos e emergentes. De acordo com Alexei Abrahams e Gabrielle Lim:
“Estamos repetindo os erros da guerra ao terror, priorizando soluções repressivas e tecnologicamente deterministas, enquanto falhamos em corrigir as queixas sociopolíticas que cultivam nossa receptividade à informação falaciosa em primeiro lugar.”
(No caso da guerra às drogas, esta frase pode ser lida como: soluções repressivas e proibitivas foram priorizadas sem corrigir as condições socioeconômicas básicas que cultivam a suscetibilidade ao abuso de drogas e vulnerabilidade ao recrutamento de redes de crime organizado.)
Estamos nos perguntando o suficiente sobre o que a nossa propensão para adotar e compartilhar desinformação é sintomática?
O que a guerra ao terror, a guerra às drogas e a guerra à desinformação têm em comum é que todas são guerras contra sintomas de fatores sociais, econômicos e políticos implícitos, disfarçados de batalhas contra ameaças “coisificadas” – terrorismo, drogas e “informações ruins”. Dessa forma, eles transformam essas ameaças em inimigos e geram orientações e soluções políticas que podem ser efetivamente usadas para corroer as liberdades civis e restringir o espaço cívico. Além disso, usando linguagem polarizadora e táticas repressivas, eles correm o risco de alimentar os próprios fenômenos que pretendem derrotar.
Então, o que podemos fazer de diferente?
Certamente há um papel importante para combater medidas como verificação de fatos, desmascaramento, contra mensagens e rastreamento de rumores para garantir que nossos ecossistemas de informações sejam saudáveis e seguros. Mas, a menos que tomemos a decisão de ir além de tentar reprimir informações “ruins” para substituí-las por informações “boas” e atender às raízes do problema, nossas vulnerabilidades crescerão e evoluirão.
Aplicar uma abordagem sistêmica à desinformação e à informação falaciosa é uma maneira de fazer isso. Nos últimos meses, desenhamos e facilitamos uma série de encontros4 que fez exatamente isso. Com a participação de um grupo de atores diversos, incluindo mais de 80 autoridades no assunto, financiadores e implementadores, adotamos diferentes lentes para explorar a questão e, por meio delas, identificamos as principais áreas de alavancagem para mudar os fatores implícitos da desinformação e informação falaciosa e as estratégias inovadoras para fazê-lo. Embora não seja completo, esse conjunto de áreas de alavancagem fornece uma indicação de como uma maneira diferente de enquadrar o problema pode focar nossa atenção ao trazer à tona os fatores sistêmicos.
Na linha dessas áreas de alavancagem, a Reos Partners está atualmente buscando três estratégias sistêmicas para ajudar a abordar alguns desses principais fatores:
Na era digital, a desinformação e a informação falaciosa se espalham mais e mais rápido. Usando técnicas de microdirecionamento, as tecnologias de informação digital combinam-se com o uso humano para amplificar rapidamente as queixas, exacerbar as tensões e aprofundar a desconfiança. Podemos ver essas dinâmicas ocorrendo na Ucrânia, bem como em outros contextos de conflito como Mianmar, Etiópia e Síria (entre outros).
Tais condições desempenham um papel importante na erosão da coesão social por meio de um ciclo de feedback generalizado: a desinformação e a informação falaciosa exploram as tensões e medos sociais existentes e corroem a coesão social; mas a coesão social enfraquecida nos torna mais suscetíveis, como indivíduos e comunidades, tanto à desinformação quanto à informação falaciosa. Mesmo onde a coesão social é relativamente forte, nenhum grupo é definitivamente impermeável aos efeitos das contínuas campanhas de desinformação.
Na Reos Partners, estamos pensando sobre a importância de manter esse ciclo de feedback à vista, à medida que as sociedades em todo o mundo lidam com os impactos da desinformação e da informação falaciosa, desenvolvendo e defendendo soluções. Concentrar-se em um lado ou outro pode treinar nossa atenção para o que a Dra. Claire Wardle chamou de “átomos de informação” e nos faz perder a dinâmica sistêmica e os impulsionadores que animam esse ciclo de feedback, exacerbam seus efeitos negativos e o mantêm no lugar. Acreditamos que nosso futuro depende de nossa capacidade coletiva de mudar esse ciclo que é tão central para a dinâmica do conflito – de um que corrói a confiança e aprofunda a divisão, para um que contribui para a resiliência do conflito e a busca de sociedades saudáveis e justas.
Para isso, desenvolvemos o Projeto Realidades Compartilhadas, uma iniciativa ambiciosa para trabalhar com atores ao redor do mundo sobre o futuro da coesão social em uma era de desinformação, por meio da aplicação de cenários transformadores.
Supõe-se frequentemente que a desinformação e a informação falaciosa são impulsionadas pela ideologia e pela política, mas também alimentam e são alimentadas por uma indústria lucrativa. Existem muitos incentivos para que os usuários de uma plataforma criem oportunidades para monetizar informações nesse espaço mal regulamentado. Mais importante, os modelos de negócios orientados pela publicidade sustentam as empresas de mídia social e mídia convencional, que incentivam práticas que privilegiam o lucro sobre as pessoas e encorajam a disseminação e amplificação de desinformação.
Estratégias inovadoras para tentar lidar com esses poderosos impulsionadores financeiros incluem campanhas para reduzir os incentivos financeiros para a publicação de histórias inflamatórias e divisivas (Stop Funding Hate - Pare de Financiar o Ódio); utilizar litígios para estabelecer o direito dos acionistas de insistir na conduta empresarial responsável (Shareholder Commons); e estruturas regulatórias, como o Código de Práticas de Desinformação da UE e o recente pacote da Lei de Serviços Digitais.
Cada uma dessas são abordagens poderosas que se mostram promissoras. No entanto, série de encontros sobre desinformação acima mencionada, demonstraram que a criação de uma melhor colaboração e troca de conhecimento entre geografias, silos temáticos e abordagens táticas entre atores que trabalham para mudar a economia da desinformação pode ajudar a melhorar, amplificar e acelerar o impacto dessa situação complexa e em constante evolução. Estamos, portanto, desenvolvendo um Laboratório de Economia da Desinformação para ajudar um grupo de atores diversos e complementares a aproveitar o potencial que uma melhor colaboração pode oferecer para influenciar efetivamente os incentivos financeiros e comerciais da economia da desinformação.
Na primeira sessão da série de encontros sobre desinformação, a Dra. Claire Wardle observou que o campo de estudos de desinformação e informação falaciosa é muito novo e está em rápida evolução, assim como as tecnologias, táticas e dinâmicas mais amplas implicadas. Existem muitas lacunas de conhecimento, incluindo (mas não se limitando a) sobre como a desinformação e a informação falaciosa fluem através dos ecossistemas de informação (sistemas complexos de relações sociotecnológicas dinâmicas através das quais a informação se move e se transforma) em diferentes idiomas e contextos ao redor do mundo; como os fatores sistêmicos influenciam essa dinâmica; e quais são as respostas mais eficazes para os desafios, eventos e danos enfrentados em escala.
Nesse contexto, há uma “lacuna de aplicação” entre a pesquisa atual e sua aplicação para melhorar as abordagens e respostas a eventos e desafios emergentes. Preencher essa lacuna requer: infraestrutura colaborativa para compartilhar pesquisas e práticas; processos, abordagens e espaços dedicados para traduzir descobertas complexas em insights úteis e para explicitamente mobilizar o conhecimento emergente na concepção de respostas imediatas e soluções de longo prazo; e capacidades e conhecimentos colaborativos para facilitar esse trabalho em várias disciplinas, instituições, setores e silos.
As respostas eficazes à desinformação e à informação falaciosa dependem de nossas habilidades em preencher efetivamente essas lacunas. Mas devemos fazê-lo de uma maneira que nos leve além de um foco singular no rastreamento e detecção de eventos e padrões de desinformação, para a construção de uma compreensão mais holística dos ecossistemas de informação. Abordagens promissoras e úteis estão sendo usadas por várias organizações no contexto de trabalho em eleições (Projeto Sentinela), comunicação em saúde (Meedan) e em contextos humanitários (Internews), mas ainda existem desafios quando se trata de traduzir pesquisas para uso em resposta e intervenção, e aprender sobre impactos e desafios.
Nosso objetivo é colaborar com um grupo de autoridades neste assunto para apoiar um ecossistema de pesquisa, aprendizado e aplicação adequada ao propósito de abordar a dinâmica da desinformação em todas as suas dimensões.
Em vez de procurar um alvo para destruir com uma bala de prata em uma guerra contra a desinformação, optamos por examinar mais profundamente os fatores implícitos da desinformação e da informação falaciosa, para que possamos construir resiliência, mudar o sistema e evitar os erros feito por “guerras”.
¹ Usamos o termo informação falaciosa para nos referir a informações equivocadas ou descontextualizadas que são apresentadas como fato, sem a intenção de manipular ou enganar. É um produto de erro, má interpretação ou mal-entendido, e é uma parte inerente da comunicação humana.
² Usamos o termo armamentação da informação para nos referir às práticas e estratégias de uso da informação para causar danos.
³ Usamos o termo desinformação para nos referir a informações que são estrategicamente criadas e compartilhadas com a intenção de enganar, manipular e semear confusão e dúvida. A desinformação pode ser inteiramente fabricada ou pode incluir informações factuais que foram alteradas, recontextualizadas ou combinadas com informações falsas.
4 A série de encontros sobre desinformação, entre 2021 e 2022, mencionadas foram iniciadas e convocadas pelo CIFF e pela Oak Foundation e facilitadas pela Reos Partners.