Esse é o primeiro de uma série de posts no blog sobre o trabalho que a Reos Partners está fazendo para abordar questões de violência contra as mulheres. Ao longo da série, vamos explorar uma diversidade de temas e o trabalho de diferentes escritórios Reos Partners.
Começamos na Austrália, com a visão de Leigh Gassner, que tem ampla experiência em lidar com a violência contra a mulher, incluindo violência doméstica e familiar e abuso sexual. Essa experiência é resultado de seu trabalho como Diretor da Reos Partners e seu trabalho anterior como Comissário Assistente de Polícia em Victoria, onde ele liderou uma iniciativa que agora é vista como um exemplo de colaboração eficaz entre organizações não-governamentais, polícia e departamentos do governo.
Nicole Endacott, também do escritório australiano, entrevistou Leigh para entender os fatores chave que levaram à mudança. Esse post analisa um desses fatores – envolver pessoas de todo o sistema. Posts futuros irão explorar outros dois fatores: olhar de forma sistêmica ao problema e utilizar uma abordagem emergente.
No final de 2001, Leigh Gassner foi nomeado para liderar um grupo de diferentes públicos para realizar reformas no sistema de resposta à violência doméstica e familiar em Victoria, na Austrália. Leigh descobriu que cada público via o sistema de maneira diferente. Quando perspectivas diversas não são vistas ou entendidas, isso pode levar problemas a serem reforçados e repetidos. Por outro lado, quando são reconhecidas e exploradas, diferentes perspectivas podem ser uma força poderosa de mudança.
Como Comissário Assistente de Polícia, Leigh representava um grupo que muitos viam como parte central do problema. Leigh reconheceu a necessidade de assumir esse papel de provocar mudanças com a mente aberta e humildade, para criar um espaço no qual novas maneiras de pensar e agir poderiam surgir.
O problema das perspectivas diversas
Durante a nossa conversa, Leigh falou sobre como perspectivas diversas não são apenas uma questão de olhar para uma situação de maneiras diferentes; elas influenciam como um sistema opera e, se não forem compreendidas, podem reforçar problemas persistentes.
“Nos reunimos uma vez por mês por cerca de três horas, tentando projetar como um novo sistema de respostas [para incidentes de violência doméstica e familiar] iria funcionar. Ficou óbvio para mim que as pessoas estavam vendo o sistema de maneiras diferentes. E, na verdade, eles não conheciam o sistema como um todo; eles estavam supondo coisas sobre outras partes do sistema na qual eles não necessariamente operavam, incluindo questões envolvendo a polícia e a justiça.
Por isso, decidimos ter um promotor e um juiz presentes para falar sobre o que a polícia e a justiça podiam ou não podiam fazer. Naquele momento não se tratava de julgamento; não era uma questão de se estavam fazendo corretamente ou não. Era uma questão do que podiam ou não podiam fazer.
Depois de um tempo, eu percebi que algumas pessoas haviam ficado bastante emocionadas. Elas começaram a perceber que, por causa das suposições que tinham, poderiam estar dando orientações erradas para vítimas de violência familiar por muito”,
Da mesma forma, pessoas em outras partes do sistema, particularmente na polícia e nos tribunais, precisavam entender que violência doméstica e familiar não era “apenas uma questão privada entre parceiros”. Pessoas estavam se ferindo e morrendo. Era um crime que precisava ser percebido e respondido dessa maneira. Compreender a violência doméstica e familiar dessa forma se tornou uma base necessária para desenvolver uma resposta mais eficiente.
A oportunidade das perspectivas diversas
Leigh também comentou, “Para que as pessoas consigam mudar um sistema dessa maneira, elas precisam vê-lo a partir de muitos ângulos diferentes, não apenas do ângulo que é normal para elas”. Ver o sistema coletivamente a partir de diferentes pontos de vista proporcionou um entendimento compartilhado mais profundo sobre o que estava acontecendo e, segundo Leigh, foi crucial “porque as pessoas podiam ver que mulheres e crianças não estavam seguras”.
Leigh também salientou que buscar outras perspectivas não significa que as coisas não precisavam melhorar:
“Não significa que não havia espaço para a polícia ou o sistema judiciário melhorarem em como respondiam aos casos. Isso ficou bastante claro. Nesse ponto do processo, era uma questão de tentar entender o sistema. A partir daquele momento, as pessoas estavam mais abertas a modificar a maneira como viam as coisas e dizer ‘o que podemos fazer agora?’”.
Os participantes podiam ver que nenhuma pessoa, organização ou setor sozinhos tinham a resposta, e que precisavam trabalhar juntos para mudar o sistema. Movidos por um desejo coletivo de garantir a segurança de mulheres e crianças, e com uma compreensão compartilhada do sistema, as perspectivas diversas se tornaram uma força poderosa de mudança.
Em observações sobre o processo realizadas mais tarde, por exemplo, participantes de organizações não-governamentais lembraram de mudanças práticas que aconteceram por meio de melhores parcerias:
“Passamos a ver novas possibilidades. Nos reunimos na delegacia de polícia local para desenvolver uma resposta conjunta para o desafio de transportar mulheres e crianças vulneráveis. A maior parte das mulheres busca abrigos à noite. Normalmente elas chegam de táxi e houve situações em que elas estavam sendo seguidas. Agora temos um sistema em que as mulheres são deixadas em delegacias de polícia 24 horas, o que melhorou dramaticamente o nível de segurança delas.”[1]
Um ambiente propício para a mudança
Percebi que havia algo no papel de Leigh que influenciou como esse grupo, antes conflitante, conseguiu trabalhar em conjunto. Por meio de nosso trabalho na Reos Partners, vi a maneira como Leigh propicia que perspectivas diferentes sejam ouvidas e apoia grupos de pessoas a trabalhar em seus problemas mais difíceis e persistentes. E em nosso trabalho a respeito da violência doméstica e familiar, fica claro que ele tem um relacionamento sólido e de respeito mútuo com as pessoas no sistema. Uma pessoa de uma organização não-governamental disse que estava “surpresa que um policial na posição de Gassner fosse capaz de entender as necessidades das pessoas de maneira tão rápida e conduzir a construção de relacionamentos de modo tão eficaz quanto ele fez.”[2]
Por outro lado, Leigh se lembra de visitar um serviço para mulheres e vítimas de violência familiar ainda no início do projeto e ter sido confrontado pelos funcionários de vários setores dali. Reconhecendo o nível de antagonismo presente com relação à polícia, Leigh percebeu que precisava passar mais tempo ouvindo:
“O ambiente era hostil porque as pessoas tinham percepções quanto à polícia. Elas achavam que, em muitos casos, a polícia não respondia de maneira apropriada ou eficaz aos pedidos de ajuda. As consequências disso era às vezes assustadoras. Embora houvesse razões reais para algumas de suas reclamações…. Eu queria que eles se abrissem e sentissem que estavam sendo ouvidos. Naquele momento eu tinha de ouvir e não responder.”
Perguntei a Leigh o que ele precisou fazer, pessoalmente, para ser capaz disso:
“Foi preciso me remover da situação – incluindo meu ego ou apego a qualquer opinião, fosse ela uma perspectiva organizacional, uma posição filosófica ou uma posição ideológica ou qualquer outro tipo de opinião. Eu precisava me desprender disso porque, do contrário, eu procuraria defender aquilo em que acredito. Fazer isso possibilitou o surgimento de uma discussão diferente.
Em determinado momento da reunião, a polícia foi intensamente criticada. Eu me levantei e admiti que, ‘Sim, não estamos agindo corretamente e é sobre isso que viemos discutir’. Um dos principais críticos se deteve e disse, ‘Bom, se formos honestos, nenhum de nós está agindo corretamente’, o que possibilitou que uma discussão totalmente diferente surgisse.”
Os aprendizados de Leigh obtidos ao liderar esse projeto são relevantes para outros problemas sociais aparentemente difíceis de lidar. Observar e entender diferentes perspectivas – e entender o que leva as pessoas a ter essas opiniões – é crucial para transformar sistemas emperrados. Quando lidamos com situações em que há conflito e divisão, criar um ambiente de confiança a abertura permite que as pessoas conduzam conversas diferentes, que levam à construção de uma compreensão compartilhada do problema – e uma abertura para explorar novas soluções e formas de pensar.
[1] Padula, Marinella, Victoria Police and family violence, Australia and New Zealand School of Government, 26 June, 2009 p 9 (accessed here)
[2] Padula, Marinella, p 7